mawaca-logotipo.png

Mawaca relembra turnê pela Amazônia

por Eduardo Vessoni

A história se repete toda vez que chega mais um grupo de estrangeiros no aeroporto de Manaus.

Hospedagem em lodges de luxo cravados na floresta, passeios superficiais a comunidades ribeirinhas e visitas a comunidades simples onde índios se fantasiam de índios para receber outra leva de turistas surpresos que enchem sacolas com artesanato local.

Mas a floresta mais cobiçada do planeta consegue dar outros tons ao ritmo de quem desembarca naquelas terras inclinado a conhecer um Brasil que não costuma se revelar em folhetos de promoção turística nem em obras cinematográficas que se empenham em retratá-lo de forma constrangedora.

Pouca gente sabe (ou teve chance de ver de perto), mas naquela área verde com mais de 7 milhões de km² existe um mundo particular que só quem vai tão longe (e tão adentro) traz na bagagem histórias que alimentam os olhos e a alma.

Em um quarto apertado de um hotel sem luxo de Ji Paraná, a 374 km de Porto Velho, sete cantoras se debruçam sobre letras indígenas que vão sendo costuradas entre sons tirados pelos músicos da banda.

Nos dias que se seguirão, o grupo Mawaca e seis etnias indígenas espalhadas por três estados do Norte brasileiro irão protagonizar um encontro que parecia impossível.

Músicos e índios se reunirão em oficinas e apresentações em público cujo repertório serão as músicas e as batidas minimalistas daquela gente que só costuma virar notícia em dias de lutas por terras ou em (estereotipados) capítulos de livros didáticos de História.

“É como fazer uma tradução daquele som que causa certa estranheza para quem não está acostumado com essas referências musicais indígenas”, explica Magda Pucci, diretora e fundadora deste grupo que há 16 anos pesquisa e canta sons de diversas partes do mundo.

Mas na floresta amazônica, o Mawaca marca o encontro daqueles índios com a sua própria história.

No camarim do primeiro show, uma movimentação quebra a rotina daquelas mulheres conhecidas pelos registros em CDs com sons do mundo. É ali que estão os protagonistas da noite, os índios da etnia Ikolen-Gavião, um grupo de pouco mais de 530 índios que vive na região leste de Rondônia.

Em meio ao clima de tensão pré espetáculo, aqueles homens de fala mansa vão chegando discretos para a preparação das flautas conhecidas como goianei, instrumento de som forte feito com bambus grandes que são tocados ao espírito das águas em épocas de chuvas.

Enfeitadas com palhas, estas flautas funcionam como uma extensão do corpo dos Ikolen e seu uso é mantido por gerações.

Aos poucos o tom amarelado daquele material natural responsável pela criação deste instrumento de vida curta começa a dividir o espaço com o vermelho extraído do urucum que vai pintando aqueles corpos que parecem, naturalmente, criados com pó de canela.

Mais do que efeito alegórico, a pintura é uma espécie de roupa para o índio que, orgulhoso, se exibe em dias de rituais ou de apresentações musicais.

Os aplausos intermitentes da plateia no final da apresentação saúdam não só o grupo, mas a todos os índios da região.

“Me envergonha saber que um grupo de São Paulo venha até aqui para mostrar a nossa própria cultura. Quem é daqui não consegue enxergar a sua própria raiz indígena”, descreve Kátia Fernandes, uma das mais de 700 pessoas que lotaram o teatro de um clube local.

A próxima parada é em Cacoal, na aldeia da Linha 14 dos índios Paiter-Suruí.

A roda de música que se forma entre os músicos e aqueles indígenas de passado guerreiro é a própria materialização do sonho de unir tradições distantes e arranjos contemporâneos.

Cantos antropofágicos como o Koi Txangaré são entoados ao som de metais e percussões; curumins descobrem novos sons com flautas chinesas e pandeiros trazidos pelos músicos; e caxixis (quem diria) viram atração naquele teatro a céu aberto rodeado por construções altas de palha.

Situados em uma região fronteiriça entre Rondônia e o Mato Grosso, os Suruí vivem em locais conhecidos como ‘linha’, uma referência à demarcação de lotes durante o processo de colonização na região. Os Suruí se autodenominam Paiter, que em língua local quer dizer ‘gente de verdade, nós mesmos’.

Mas quando chegam forasteiros naquele pedaço isolado de Amazônia a recepção é simples e calorosa.

“Esta é uma troca de experiência entre duas tribos: os Suruí e o Mawaca”, define o articulado Uraan Suruí, um jovem que começa a se interessar pelas tradições de sua gente.

Uraan e toda aquela gente têm uma disposição infinita e olhares curiosos que se fixam diante da novidade musical.

Em menor número e com uma memória histórica já alterada por fortes influências da cultura branca, como a introdução de cultos evangélicos, os Karitiana são os personagens do destino seguinte, Porto Velho.

O passado ainda desconhecido desta gente, cujos registros datam da primeira metade do século 20, é mantido por uma população de pouco mais de 300 pessoas que vivem na aldeia Karitiana, próximo à capital de Rondônia.

Localizado a 100 km de Porto Velho, o local ainda tem acesso de terra, mas começa a se descaracterizar com o surgimento de casas de alvenaria e de construções que funcionam como igrejas que, segundo definição dos próprios Karitiana, são a ‘casa de Deus’.

Diante daquela etnia onde homens e mulheres não se misturam na hora de cantar, o Mawaca outra vez quebra paradigmas e funde, em um mesmo palco, vozes femininas de múltiplos timbres com o canto baixo e melódico dos poucos Karitiana que apareceram para o show seguinte.

Índios nus à margem do rio, mulheres submissas cuidando dos afazeres domésticos e crianças correndo entre ocas já não fazem parte de sua rotina. Há tempos, o índio já não é mais o mesmo das histórias ingênuas contadas quando éramos crianças.

Uma visita à floresta amazônica pode ser uma viagem não só do corpo mas também da alma. E esta jornada toma rumos alucinantes, literalmente, quando acompanhada dos próximos protagonistas: os kaxinawá.

Na época em que o Mawaca lançou ‘Rupestres Sonoros’, CD de 2007 que faz uma incursão musical pelo mundo indígena e o relaciona com as pinturas rupestres, seus integrantes não poderiam imaginar os caminhos que percorreriam mais tarde.

Foi naquele encontro com os kaxinawás que aquela história de arqueologia musical e imagens ancestrais começa a fazer sentido para aqueles músicos que ainda não tinham tido a oportunidade de manter um contato tão próximo com os índios autores daqueles cantos.

Quando o grupo já dava sinais de cansaço e a cultura indígena começava a querer se repetir, aparecem os kaxinawás.

Aos poucos, aqueles vaidosos homens de adornos detalhistas e pinturas marcantes com jenipapo e urucum começam a surgir entre as árvores de uma área verde de uma ONG de Rio Branco, onde o encontro havia sido marcado.

Eles são discretos, silenciosos e caminham tão lentamente quanto o curso do rio que os trouxera até a capital acriana, uma viagem que começara três dias antes na fronteira com o Peru.

Ainda assim os Huni Kuin, como também são conhecidos, conseguem causar um dos maiores impactos de toda a viagem. Após o primeiro contato, uma conversa empolgada sobre o seu visual de cocares de dimensões exageradas e a pintura com referências a animais, o grupo distribui um pó acinzentado para os músicos.

Xamânicos, os Kaxinawá são conhecidos não só pela utilização do ayahuasca em eventos conhecidos como ‘ritual do cipó’, mas também pelo uso do ‘rapé’, uma mistura de ervas amazônicas com tabaco e cinza de pau de balso. Mais do que um remédio natural utilizado em rituais de cura, o ‘rapé’ é uma forma de abrir o pensamento e atrair boas energias.

Essas excursões exploratórias pelo mundo do espírito costumam causar diferentes reações em quem usa o ‘rapé’. Enjoo, dor de cabeça e sensação de felicidade extrema são algumas delas.

Porém quando aquele grupo de índios com olhares penetrantes começa a entoar Matsã Kawã, música kaxinawá usada em rituais de ‘miração’, os visitantes começam a se sentar, calados, e ter uma das experiências mais introspectivas de toda a viagem. E dali em diante, cada um daqueles músicos toma o rumo de uma viagem particular que só a Amazônia poderia protagonizar.

O último destino da incursão musical foi no estado mais famoso daquele território de selva: o Amazonas.

A primeira visita foi à comunidade Bayaroá, um conglomerado de remanescentes de diversos grupos como os Tukano, Tuyuka, Bará, Desana e Tariana. Localizado na periferia de Manaus, o grupo ainda preserva algumas práticas como os desenhos com crajiru, planta medicinal que costuma ser usada também em pinturas corporais, o uso de flautas em apresentações musicais e uma profunda consciência da preservação de seu passado.

Em língua indígena, ‘bayaroá’ significa ‘mestre em danças e rituais’. E foi essa gente de movimentos compassados e sons tirados por flautas de tubo que produzem sons parecidos aos dos orientais que protagonizou a primeira apresentação de índios como artistas no Teatro Amazonas, símbolo cultural e arquitetônico da região.

Aquela construção imponente erguida no final do século 19 para a elite do ciclo da borracha serviria agora como palco de uma apresentação pouco provável naquelas terras que parecem ter apagado seu passado indígena.

Manacapuru, município a 84 km de Manaus, à margem esquerda do rio Solimões, marcou o fim da viagem. A chegada à comunidade Kambeba é feita em uma canoa simples de tronco de árvore que cruza um riacho local.

Chegada à comunidade Kambeba, em Manacapuru (foto: Eduardo Vessoni)
Chegada à comunidade Kambeba, em Manacapuru (foto: Eduardo Vessoni)

“Sentimos que isto é como uma ilha isolada e de água pura. O mundo de lá ficou separado do lado de cá”, descreve Marlui Miranda, cantora especializada em sons indígenas que também acompanhou a turnê do Mawaca.

Tradicionais, aqueles índios conhecidos também como Omágua, surpreendem pelo interesse nos instrumentos da banda e chegam a solicitar que o próprio Mawaca faça arranjos para as suas músicas.

As crianças ainda brincam entre malocas, buzinas sonoras tiradas de pedaços de bambu são tocadas quando chegam forasteiros e cantos seguem sendo entoados na comunidade, ainda que muitos deles tenham influências visíveis de hinos tocados em igrejas evangélicas.

Na época que estive como jornalista do Mawaca na turnê da banda, eu usava dreadlocks no cabelo (laranja e verde, para ser bem específico) e o que deveriam ser homens brancos curiosos sobre aquela cultura pouco conhecida se transformaria em índios curiosos sobre aquela gente vindo de longe com cabelos coloridos e roupas fora do comum.

Enquanto subia a ladeira de volta para o ônibus que esperava o grupo para o retorno, um pequeno índio gritou quando eu passei por uma casa simples de alvenaria: “Lá vem o homem do cabelo de lã de fazer blusa”. Eu nunca poderia ter imaginado uma definição tão precisa e detalhada sobre um simples cabelo no estilo rastafári.

A apresentação com o Mawaca e os Kambeba, no Parque do Ingá, marcaria o fim daquela experiência por território amazônico.

E mais do que um mergulho profundo em sons indígenas, foi uma viagem emocional com data de início, mas sem prazo de término.

Reveja o documentário ‘Cantos da Floresta’, dirigido por Magda Pucci e Eduardo Pimenta

Outras Postagens

Mawaca lança oitavo disco

Com repertório inédito, este projeto foca na essência formadora do grupo, iniciado há 27 anos, quando as vozes femininas ainda eram pouco ouvidas, delineando os

Veja mais

MAWACA LAB

O Mawaca inicia a exibição de uma série de vídeos em formato de oficinas, palestras e um podcast com integrantes da banda, mostrando os bastidores

Veja mais

Mawaca lança o disco Nama Pariret

Adquira agora pela plataforma